sábado, 30 de abril de 2011

A Rotina do Filho Pródigo

Desperto de sobressalto - culpa do último dos tantos sonhos, que me lembra: atrasei-me. É tarde demais, sempre é tarde demais. Quem sabe Você tenha esperado até alguns minutos atrás, mas acordei agora, e agora é sempre tarde demais. 

Contudo, na humana e ingênua pirraça, penso: "talvez não... Talvez Você tenha Se condoído. Quem sabe tenha feito um café, pegado o jornal, sentado, lido as manchetes. Até abriu a porta, mas o dia estava frio e Você esqueceu o casaco, voltou-Se e desistiu de sair. Talvez tenha tido preguiça de se levantar, de voltar à Sua tão distante habitação. Quem sabe eu abra e porta e..."

Na esperança aflita, levanto-me, olho para os lados e corro casa afora em busca de Sua presença. Faço barulho, chamo, rastreio cada cômodo e olho pela janela. Rapidamente constato: o jornal está lá fora, as xícaras, limpíssimas, a poltrona, vazia. Como costumeiro, a casa está intocada. Tarde demais. Nenhum bilhete, nenhuma pegada no chão, nenhum sinal, exceto eu mesma, de que Você esteve aqui. Mas sei que só estou porque Você me trouxe... Não é? Sento-me e inutilmente choro. Quero acreditar que sim, já que sempre acordo em casa, mas nunca durmo nela. Não que eu me recorde de onde é que adormeci, mas é improvável que minha mente anestesiada e meu andar descoordenado soubessem o caminho de volta, tendo ido tão longe.

Meu vestido, uma tentativa de fingir com efetividade, já não parece tão convincente. A maquiagem está borrada, os olhos, fundos, o cabelo, embaraçado. Minha imagem lembra a já famigerada de uma meretriz cansada, tenho de admitir. Não sei mesmo o que fiz de mim ontem... Sei apenas de ter me entupido de entorpecentes que, agora, repudio. Nada como a luz da manhã para se arrepender da escuridão da noite: dor de cabeça, tontura, ressaca. Mas isso não é o que mais me incomoda.

Estou só. Você me deixou aqui e partiu. E o restante, silêncio insuportável que emana e transborda da mobília, prova a minha insuficiência e preenche meu vácuo, que chora. É palpável, é líquido represado pelas paredes, e, de repente, estou afogando. Preciso sair para respirar. Lavo o rosto, retoco a maquiagem, escovo os cabelos e saio.

O dia é bonito e há muito a se ver. Muito a se ver é descanso para a alma. Ando, portanto, confortada, por entre as ruas e praças, lojas e cafés, desprovida de destino – aproximo-me do que me parece mais bonito, analiso, sorrio e depois avisto outro alvo igualmente belo e igualmente deleito-me em sua efemeridade. Se não isso, vou aos passantes. Ah, os passantes. Os passantes são envoltos num éter de mistério infindável e, por isso, faço questão de abordar alguns. Também sou abordada. Uns vêem a súplica em meus olhos (“conte-me algo novo, por favor!”) e atendem a ela. Outros a ignoram. Outros escandalizam-se com minha necessidade e tentam convencer-me de que há desígnios mais valiosos, embora eu, farta de suas nobres e delimitadas descrições, os rejeite. Meu desígnio é este: quero que me contem fatos aleatórios e explanem opiniões desconexas entre si. E quero contar, também, o que demanda hipérboles, mentiras e impessoalidades. Só.

Em certo momento, vejo que andei tão conscientemente, num controle tão bem encenado, que chego a imaginar que, na verdade, eu soube o caminho de volta desde o início...

Mas a noite chega e, com ela, o breu e a solidão. O silêncio agora me persegue no escuro. Vem o pânico: não há como fugir uma vez que a fuga se completa - já olhei o maior número de paisagens, já corri a maior distância, respirei o ar mais exterior, que agora teima em faltar, e, ainda assim, assisto às ruelas tornarem-se sem saída e gradativamente delgadas. Meu desespero despiciendo, mas insistente, conduz-me às luzes do bar, da danceteria, ou de qualquer outro campo de refugiados a fim de que eu cumpra o roteiro: como escape último, ofereço-me a Baco e danço, cada vez mais cambaleante, de acordo com a batida, numa celebração grotesca ao alívio aconchegante da distração. Por fim, embriago-me até perder os sentidos, a memória e, objetivamente, a consciência de que meu vazio se faz mais presente do que nunca.

Provavelmente deito-me na sarjeta e durmo. E, então, minha esperança: provavelmente Você vem, pontual e certeiro, misericordioso, como quem me seguiu com os olhos o dia todo, como quem me sonda e me conhece, recolhe-me de minha miséria e me leva para casa.

No fundo, eu sei: há mais uma motivação, essa autodestrutiva, para tudo isso. Caminho até tão longínquo e abandono-me com tanta frieza para que Você venha me buscar. Para me sentir procurada, alcançada e carregada por Você.

Acordo, porém, sozinha. É tarde demais.