sábado, 1 de dezembro de 2012

futuro

Os Ombros Suportam o Mundo

Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram. 
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

Carlos Drummond de Andrade

sexta-feira, 25 de maio de 2012

Infeliz, sim; miserável, pobre, cego e nu

“Dele fugi, noites e dias adentro;
Dele fugi pelos arcos dos anos; Dele fugi, pelos caminhos dos labirintos
De minha própria mente; e no meio das lágrimas
Dele me ocultei, e sob riso incessante,
Por sobre esperanças panorâmicas corri;
E lancei-me, precipitado,
Para baixo de titânicas trevas de temores abissais,
Para longe daqueles fortes Pés que seguiam, seguiam após mim.
Mas com desapressada perseguição,
E com inabalável ritmo,
Deliberada velocidade, majestosa urgência,
Eles marcavam os passos - e uma Voz insistia
Mais urgente que os Pés -
“Todas as coisas traem a ti, que traíste a Mim”."

Francis Thompson

sexta-feira, 2 de março de 2012

O Cristianismo sem calvário

Um dos males hodiernos – porque narcisistas – mais irritantes é o da personalização. A maleabilidade de sistemas tornou-se uma qualidade lucrativa, já que permite ao cliente tornar espelhos de si todas as suas aquisições, desde as mais necessárias às mais acessórias. Inúmeros informes publicitários seduzem, apenas trocando um ou outro vocábulo: have it your way.

A jogada de marketing, porém, causa substanciais prejuízos quando generalizada em instituições de base, especialmente na religião, que, sendo um sistema de sentido, não faz mais que infantilizar fiéis e doutrina ao adaptar-se a conveniências banais. O ser humano tende naturalmente a afrouxar para acomodar-se, e oficializar tal atitude é, antes de tudo, rasgar o véu das figuras sagradas e profaná-las a bel-prazer.

No Cristianismo especificamente, criticam-se a teologia da prosperidade e as igrejas neopentecostais que se multiplicam, barulhentas, e apresentam um Deus semelhante a um gênio da lâmpada. Mas se esquece de que isso é apenas sintoma de já arraigadas necessidades: a de eliminar a dor da experiência humana e a de viver sob felicidade anestesiante, ambas aparentemente osmotizadas para "facilitar" a vida cristã. Disciplina, renúncia, culpa e arrependimento, porém, formam a base da tradição bíblica, sem a qual não se faz Cristianismo. Não sem dor.

Os primeiros cristãos não se deixavam intimidar pela ameaça de morte que rondava as catacumbas, onde, escondidos, fundavam o que se chama igreja primitiva. Liam ali o livro sagrado, adoravam ao seu Deus e executavam as atividades de praxe, fervorosamente - e que não se confunda fervor com os famigerados berros e imposições de alguns atuais representantes cristãos.

Entretanto, pregações, hoje, são discursos motivacionais. Fala-se de paz, amor, felicidade, e, nos casos cômicos, dinheiro, omite-se o “negar-se a si mesmo" e o "tomar a própria cruz”, reduz-se Deus à energia cósmica que não só recompensa os bonzinhos, mas é submisso aos seus desejos. Biblicamente, será?

Jó, o justo, perdeu todos os seus bens, família e saúde, Jacó, herdeiro de Abraão, lutou contra um anjo, Paulo, o 13º discípulo, foi perseguido até a morte e mesmo o rei Davi, "o homem segundo o coração de Deus", caiu de joelhos ao carregar o peso insustentável do arrependimento: trata-se de homens cujo valor foi ressaltado sobretudo pela consciência de apenas pó serem - a mais profunda humildade -, e não por possuírem "auto-estima elevada". Mas a antes sofrível redenção é, agora, barateada a preços promocionais, tão oferecida e orgástica quanto um menu de fast-food. Por que não trocar, aliás, os insípidos pão e vinho por um Whopper triplo de queijo com Coca-Cola? 

Do Éden à nova Jerusalém, cada história narrada exigiu suor, lágrimas, sangue ou os três. Ignorando-as ou as descontextualizando, alguns cristãos moderninhos have it their way: dão-se ao luxo de esnobar a noção de pecado, submetem Deus aos próprios caprichos e fogem do sofrimento como o diabo da cruz. Ainda que seu Cristo tenha sacrificado-se nela.

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O Lobo e o Bode

Já parou para observar crianças brincando? Recomendo. Correm, berram, riem, inventam jogos e mentiras, compartilham brinquedos e, principalmente, competem.

Quem tem o cabelo mais bonito, mais brinquedos, o que aprendeu a ler primeiro ou é mais ágil na corrida... Em casos mais alardeantes, o que bate mais forte. Barganham e mercantilizam suas virtudes e bens como adultos "capitalistas selvagens" antes mesmo de qualquer noção sobre mercado, exploração e valor monetário. Talvez antes mesmo de considerar isso "coisa de menino mau". Conhecem poucos meios de influência, e, de fato, por vezes não se preocupam com mesquinharias egoístas – mas mais por ingenuidade do que inocência, quando o fazem. Crianças também dispõem do que possuem – seja o último tênis de luzinha ou as mais nobres habilidades artísticas – para mostrarem-se melhor do que as outras e, naturalmente, dominarem.

Embora não seja novidade, a partir disso é possível ouvir que, se há pequenos lobinhos assim, estão já corrompidos pela sociedade, tão maculada pelo sistema e por sua conivência a injustiças, cuja ilustração máxima culmina no estímulo à desigualdade e esnobismos, no "culto ao capital". Alguns, ainda em tal discurso, altivamente se declaram "desprendidos de bens materiais".

Mas desconfio de que a necessidade de preponderância não seja tão circunstancial.

Evidente que "a sociedade" é maculada. Historicamente, a balança entre iniquidades e bondades pende tanto para o primeiro lado que o constrangimento ao olhá-la pulsa. Porém, exatamente por independerem de tempo e espaço é que a ganância e o orgulho desvelam-se entranhados, dependendo da conjuntura apenas em sua forma, mas não em sua existência. Guerras tribais africanas por poder, a exemplo, tinham como saldo (analogamente a épocas antigas, como com os povos clássicos e mesopotâmicos) prisioneiros vendidos tanto para propósitos consuetudinários quanto para movimentar a economia interna, muito antes da chegada dos europeus. No início da colonização, os índios não foram obrigados a executar o escambo. Fizeram-no para adquirir o que quer que fosse vantajoso, ainda que minimamente, mesmo que nada daquilo pertencesse à sua cultura ou tivesse utilidade nas relações comunitárias.

Ainda, Eva, ao abocanhar a vermelha e sedutora maçã, desejava nada mais que o lucro de obter conhecimento e tornar-se mais rica no Éden. O pecado original, que tomou forma inelutavelmente, não procurava o dinheiro ou os "supérfluos bens materiais". Ironicamente, quis apossar-se de uma aparente virtude, e, hoje, insinua-se nos tais discursos altivos e levianos. A ancestral auto-propaganda.

O poder, além de sempre haver preservado a sobrevivência de seu detentor, conduziu-o ao topo da hierarquia, plenamente satisfazendo ego e fantasias. Nada disso dependeu do sistema atual ou de bens materiais para realizar-se, simplesmente existiu: e é óbvio, básico.

Nem crianças, nem bons selvagens, nem os primeiros errantes puderam fugir da caça incansável ao poder. O lobo do homem é o próprio homem. Dinheiro é só um bode expiatório.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A Ditadura dos Capazes

Através do exame da mídia e da opinião popular, torna-se evidente que o processo organizacional mais almejado é o que leva em conta sobretudo o merecimento individual para a formação das hierarquias sócio-econômicas. A polida meritocracia, presumidamente, seria capaz de calar a indignação generalizada e satisfazer a ânsia por justiça, fomentando a sensação de que cada cidadão ocupa o espaço que lhe é devido, sem ressalvas quaisquer.

É uma ironia, entretanto, que as mesmas mídia e população reiterem à exaustão o valor objetivo de todos os seres humanos, com talentos únicos, escondidos e, aparentemente, distribuídos pelo acaso igualitariamente, como se a natureza, assumindo contornos de unidade consciente, possuísse atributos morais e não confeccionasse indivíduos no total mais hábeis, e, por conseguinte, mais merecedores que outros, e também pobres de espírito. Tal crença também despreza meios financeiro e de criação, concedidos ao aleatório, uma vez que ninguém pode escolher o microcosmo em que nascerá. É tendenciosa e lucrativa, preenchendo páginas de auto-ajuda em sua forma mais histérica e de cultos jornais, na mais discreta.

A natureza, porém, não firma compromisso algum com a ética humana. Se tem consciência, afinal, delicia-se com sadismo: cria indivíduos medianos em grandes lotes e os distribui fartamente pela superfície terrestre, enquanto, avarenta, acrescenta poucas pitadas de inteligência, beleza e coragem, subtraindo, ainda, tais características de alguns. O mérito não é democrático, como sugere um breve olhar na história.

Supondo, portanto, uma sociedade rigorosamente meritocrática, como idealizado, as desigualdades estampadas não seriam mais consequência de governos incompetentes, interesses individuais ou instituições de base falhas, mas de um acaso implacável, indiferente e impessoal. Estando todos onde mereceriam, não haveria culpados pela bela vizinha bem-empregada, o dinheiro do convincente chefe ou os oito anos de cursinho – os fracassados (segundo um sempre duvidoso conceito) desesperançosamente perderiam mais e possuiriam peremptoriedade na esfera pública, na melhor das hipóteses, apenas ultrapassando duras barreiras, exatamente como no real sistema. Ou, pior: sem poder culpar ninguém em alta voz.

Talvez, então, assombrada pelo próprio patamar de desenvolvimento e às voltas com conceitos distorcidos de merecimento, a sociedade (ou apenas os mais capazes e "amáveis") instituísse cotas ou doasse pílulas para os azarados e desprovidos de riqueza genética e moral, temendo a revolta dos não laureados, compensando os maus modos do acaso, cambaleando na terrível injustiça da meritocracia.