quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

O Lobo e o Bode

Já parou para observar crianças brincando? Recomendo. Correm, berram, riem, inventam jogos e mentiras, compartilham brinquedos e, principalmente, competem.

Quem tem o cabelo mais bonito, mais brinquedos, o que aprendeu a ler primeiro ou é mais ágil na corrida... Em casos mais alardeantes, o que bate mais forte. Barganham e mercantilizam suas virtudes e bens como adultos "capitalistas selvagens" antes mesmo de qualquer noção sobre mercado, exploração e valor monetário. Talvez antes mesmo de considerar isso "coisa de menino mau". Conhecem poucos meios de influência, e, de fato, por vezes não se preocupam com mesquinharias egoístas – mas mais por ingenuidade do que inocência, quando o fazem. Crianças também dispõem do que possuem – seja o último tênis de luzinha ou as mais nobres habilidades artísticas – para mostrarem-se melhor do que as outras e, naturalmente, dominarem.

Embora não seja novidade, a partir disso é possível ouvir que, se há pequenos lobinhos assim, estão já corrompidos pela sociedade, tão maculada pelo sistema e por sua conivência a injustiças, cuja ilustração máxima culmina no estímulo à desigualdade e esnobismos, no "culto ao capital". Alguns, ainda em tal discurso, altivamente se declaram "desprendidos de bens materiais".

Mas desconfio de que a necessidade de preponderância não seja tão circunstancial.

Evidente que "a sociedade" é maculada. Historicamente, a balança entre iniquidades e bondades pende tanto para o primeiro lado que o constrangimento ao olhá-la pulsa. Porém, exatamente por independerem de tempo e espaço é que a ganância e o orgulho desvelam-se entranhados, dependendo da conjuntura apenas em sua forma, mas não em sua existência. Guerras tribais africanas por poder, a exemplo, tinham como saldo (analogamente a épocas antigas, como com os povos clássicos e mesopotâmicos) prisioneiros vendidos tanto para propósitos consuetudinários quanto para movimentar a economia interna, muito antes da chegada dos europeus. No início da colonização, os índios não foram obrigados a executar o escambo. Fizeram-no para adquirir o que quer que fosse vantajoso, ainda que minimamente, mesmo que nada daquilo pertencesse à sua cultura ou tivesse utilidade nas relações comunitárias.

Ainda, Eva, ao abocanhar a vermelha e sedutora maçã, desejava nada mais que o lucro de obter conhecimento e tornar-se mais rica no Éden. O pecado original, que tomou forma inelutavelmente, não procurava o dinheiro ou os "supérfluos bens materiais". Ironicamente, quis apossar-se de uma aparente virtude, e, hoje, insinua-se nos tais discursos altivos e levianos. A ancestral auto-propaganda.

O poder, além de sempre haver preservado a sobrevivência de seu detentor, conduziu-o ao topo da hierarquia, plenamente satisfazendo ego e fantasias. Nada disso dependeu do sistema atual ou de bens materiais para realizar-se, simplesmente existiu: e é óbvio, básico.

Nem crianças, nem bons selvagens, nem os primeiros errantes puderam fugir da caça incansável ao poder. O lobo do homem é o próprio homem. Dinheiro é só um bode expiatório.

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

A Ditadura dos Capazes

Através do exame da mídia e da opinião popular, torna-se evidente que o processo organizacional mais almejado é o que leva em conta sobretudo o merecimento individual para a formação das hierarquias sócio-econômicas. A polida meritocracia, presumidamente, seria capaz de calar a indignação generalizada e satisfazer a ânsia por justiça, fomentando a sensação de que cada cidadão ocupa o espaço que lhe é devido, sem ressalvas quaisquer.

É uma ironia, entretanto, que as mesmas mídia e população reiterem à exaustão o valor objetivo de todos os seres humanos, com talentos únicos, escondidos e, aparentemente, distribuídos pelo acaso igualitariamente, como se a natureza, assumindo contornos de unidade consciente, possuísse atributos morais e não confeccionasse indivíduos no total mais hábeis, e, por conseguinte, mais merecedores que outros, e também pobres de espírito. Tal crença também despreza meios financeiro e de criação, concedidos ao aleatório, uma vez que ninguém pode escolher o microcosmo em que nascerá. É tendenciosa e lucrativa, preenchendo páginas de auto-ajuda em sua forma mais histérica e de cultos jornais, na mais discreta.

A natureza, porém, não firma compromisso algum com a ética humana. Se tem consciência, afinal, delicia-se com sadismo: cria indivíduos medianos em grandes lotes e os distribui fartamente pela superfície terrestre, enquanto, avarenta, acrescenta poucas pitadas de inteligência, beleza e coragem, subtraindo, ainda, tais características de alguns. O mérito não é democrático, como sugere um breve olhar na história.

Supondo, portanto, uma sociedade rigorosamente meritocrática, como idealizado, as desigualdades estampadas não seriam mais consequência de governos incompetentes, interesses individuais ou instituições de base falhas, mas de um acaso implacável, indiferente e impessoal. Estando todos onde mereceriam, não haveria culpados pela bela vizinha bem-empregada, o dinheiro do convincente chefe ou os oito anos de cursinho – os fracassados (segundo um sempre duvidoso conceito) desesperançosamente perderiam mais e possuiriam peremptoriedade na esfera pública, na melhor das hipóteses, apenas ultrapassando duras barreiras, exatamente como no real sistema. Ou, pior: sem poder culpar ninguém em alta voz.

Talvez, então, assombrada pelo próprio patamar de desenvolvimento e às voltas com conceitos distorcidos de merecimento, a sociedade (ou apenas os mais capazes e "amáveis") instituísse cotas ou doasse pílulas para os azarados e desprovidos de riqueza genética e moral, temendo a revolta dos não laureados, compensando os maus modos do acaso, cambaleando na terrível injustiça da meritocracia.