domingo, 9 de outubro de 2011

Timidez

A luz que reflete daqueles olhos até os teus é caminho único até o negror daquelas pupilas, e teu ânimo corre em frenesi por ele, na ânsia de mergulhar no breu que esconde – como queres que esconda! – a matéria de que essa alma é feita. A face parece-se com todas as outras de que te lembras, juntas, e justamente por amalgamar diversas banalidades é que não podes raciociná-la, desenhá-la, rotulá-la e, por conseguinte, amá-la. Porém, por motivo idêntico – e aí vai o que desperta teus demônios –, és incapaz de arranhá-la, cuspir-lhe, esbofeteá-la, enchê-la de defeitos e, enfim, repreender a pirraça de tua curiosidade, calar-lhe o agudo e insuportável choro por dizer-lhe que não importa, que o que vês é irrelevante e descartável, que podes passar incólume por tamanha desimportância. Mas, não, ao contrário: ainda, para atiçar a fúria da criança, as palavras que profere aquela boca, embora coesas e adaptadas a teu cérebro, espantam-te tanto por sua grandeza que teus sentimentos não as acolhem: confundem-se e embaralham-se para tentar recebê-las, mas apenas as armazenam toscamente enquanto elas avolumam-se, esfolando teu peito com vértices tão pontiagudos. Como sofres!  Sofres por não poder beber esse espírito de um gole só, mas temes, estagnado, que o movimento brusco da investigação profunda de tuas perguntas possa destruir de tal ser a natural fluidez. Qualquer gesto teu poderia obliterar o conjunto e tua voz seria nada mais que um acorde dissonante na sinfonia. Calas-te, enfim, como recurso último de tua insignificância, observas, conformas-te, deglutes com aspereza tua ansiedade anímica e deixas – quase desejas – que as palavras cessem e os pés se afastem para distante de ti. És mínimo, frágil e incapaz.

Suspiras o ar pesado e estático que se concentrou em torno de tuas narinas. Estás eufórico, cansado como um Hermes despreparado, porque teus olhos naqueles nada alcançaram além de interrogações. E porque a maior delas ecoa insistentemente em tua consciência: de que era aquele espírito feito?


O silêncio deixa um vácuo para propositalmente confrontar as inexplicações que passaram com pura calmaria. Queres de volta o caos, para devassá-lo.

Mas assentes, vencido.


Em salvação, num átimo vês, talvez apenas no desespero de encontrar um álibi para acalmar-te, mas certamente como quem descobre numa conduta justificada por Deus a satisfação mais plena de saber o que fazer e sentir: não importa.


Se o ser volvesse e pudesses reencontrá-lo repetidamente, com extenso tempo, como um rotineiro irmão, ou partisse indefinidamente, como estrela que cai e desaparece deixando somente rastro e sendo em seguida esquecida, ambos seriam consoladores fins perante os olhos teus, grandes, perturbados, seduzidos pelo imensurável mistério que pode guardar, por vezes, um humano qualquer.

sábado, 6 de agosto de 2011

Quando não há mérito

"(...)
- Jejuas ainda? - perguntou o inspetor. - Quando vais cessar de uma vez?
- Perdoem-me todos - sussurrou o jejuador, mas somente o compreendeu o inspetor, que tinha o ouvido colado à grade.
- Sem dúvida - disse o inspetor, pondo o indicador na fronte para demonstrar ao pessoal o estado mental do jejuador -, todos te perdoamos.
- Tinha desejado durante toda a minha vida que admirásseis minha resistência à fome - disse o jejuador.
- E a admiramos - retrucou-lhe o inspetor.
- Mas não devíeis admirá-la - disse o jejuador.
- Bem, pois então não a admiraremos - retrucou o inspetor. - Mas por que não devemos admirar-te?
- Porque sou forçado a jejuar, não posso evitá-lo - disse o jejuador.
- Isso já se vê - disse o inspetor -, mas por que não podes evitá-lo?
- Porque - disse o artista da fome levantando um pouco a cabeça e falando na própria orelha do inspetor para que suas palavras não se perdessem, com lábios alargados como se fosse dar um beijo -, porque não pude encontrar comida que me agradasse. Se a tivesse encontrado, podes acreditá-lo, não teria feito nenhuma promessa e me teria fartado como tu e como todos.
Essas foram suas últimas palavras, mas ainda em seus olhos mortiços mostrava-se a firme convicção, embora já não orgulhosa, de que continuaria jejuando.
(...)"


                                                           Um Artista da Fome - Franz Kafka

segunda-feira, 4 de julho de 2011

Sem surpresa

Embora haja a preservação da individualidade (descritível como sobrevivência e prevalência ideológicas), sempre foi próprio da espécie humana o sincretismo em suas mais diversas matizes e superfícies de contato, desde o microcosmo familiar até as relações entre as nações. Outrora, esta amálgama antropológica dava-se majoritariamente através de guerras, cujo fim natural é o domínio dos mais sobre os menos belicamente capazes. Os fortes, a poucas exceções, impunham também seus hábitos, deuses e leis aos fracos; porém, a cultura dos últimos adentrava pelas fendas da conduta oficial como meio de sobrevivência, uma vez que seus praticantes dela precisavam e nela acreditavam. O sincretismo cultural era, portanto, necessariamente acompanhado do sincretismo étnico ou da presença física das partes envolvidas, como é observável em numerosos momentos históricos e coordenadas geográficas. As glórias, ideologias e deficiências de um povo só alcançavam com efetividade outro se fossem carregadas nos lombos dos marchantes – se pisassem o alheio território.

Porém, no decorrer dos séculos, a civilização desenvolveu-se e teve de percorrer diferentes caminhos para chegar ao mesmo objetivo, naturalmente a subjugação.  Especialmente com a fartura de meios de comunicação pós Terceira Revolução Industrial, que disseminam discursos – acentuados pelos traumas dos regimes totalitaristas – de respeito ao espaço e comportamento do próximo, a invasão corporal com violência tornou-se indecorosa e obsoleta (a menos que o outro infrinja obscenamente a ética combinada). Ecoou-se mundialmente honorável o cosmopolitismo e relativizável o nacionalismo. Tantas foram as barreiras que se fez urgente a elaboração de veladas formas de conquista – sem explícita agressão.

Invasões bem sucedidas, porém, só ocorrem em meio à discrepância de forças e, claro, ainda existem nações fortes e fracas na luta pela hegemonia da influência: economicamente. Desnecessário dizer que a dominação dos pobres pelos ricos repete-se. Fundamental dizer que não mais através de explosões, mutilações ou torturas, mas do aproveitamento da dependência financeira e social que os pequenos têm em relação aos grandes. A cultura dos últimos normalmente se sobrepõe à dos primeiros sem significativa resistência por mostrar e esperançosamente trazer melhores resultados que a original. Há mixagem cultural, no entanto, a cultura mais abastada prevalece com liberdade sobre a mais necessitada, pois os pobres, diferentemente de antepassados fracos, estão receptivos à novidade. Não à toa, o american way of life foi altamente impulsionado quando o mundo capitalista tinha em sua composição uma Europa molestada por guerras e uma América sem o mínimo de indústrias dignas.

O falatório do respeito, então, só subsiste entre poderes consideráveis conformes, com semelhantes dimensões de preponderância. Não por casualidade foram países desenvolvidos que o fomentaram – convém-lhes, naturalmente.

À medida que a cultura de outrem não deve representar em si uma ameaça à integridade de determinado grupo, pois são todos iguais e até a disputa deve ser diplomática, mas o contato com o externo não implica – antes, dispensa – a homogeneização (que já é ameaça para a integridade das culturas), cria-se uma relação de vizinhança e tolerância, não miscelânea. Esferas independentes entre si, que se cumprimentam e se louvam a distância; a exemplo da União Europeia, permitem até a livre circulação de pessoas e bens, entretanto, em crise financeira como a atual, é explícito quanto valor cada Estado faz questão de fornecer a suas fronteiras. O discurso do respeito compreende, por conseguinte, a intocabilidade do respeitado, o polido afastamento. Exceto alguns casamentos interpátrios, há, no máximo, uma aproximação intelectual em que diversas culturas são estudadas e mesmo admiradas por um observador, mas improvavelmente absorvidas por ele.

É curioso, mas fatídico, como o sincretismo só pode acontecer de modo forçado em qualquer contexto. Os últimos casos demonstram que o nacionalismo segue sendo mais presente que o cosmopolitismo, ao contrário do que apraz ser dito.

São obtidos dois fins paradoxais para a multiplicidade de culturas: o da desagregada coexistência e o da substancial neutralização (...dos sem recursos pelos magnificentes).

Assiste-se, pois, desde a adoção da mentalidade recente, a mais uma contradição moderna, sem surpresa. Proporcional homogeneização não ocorre nem mesmo em cenários distintos, e esquece-se de que a dominação na disparidade está ancestralmente inveterada nos sistemas humanos, justamente por serem humanos.

sábado, 30 de abril de 2011

A Rotina do Filho Pródigo

Desperto de sobressalto - culpa do último dos tantos sonhos, que me lembra: atrasei-me. É tarde demais, sempre é tarde demais. Quem sabe Você tenha esperado até alguns minutos atrás, mas acordei agora, e agora é sempre tarde demais. 

Contudo, na humana e ingênua pirraça, penso: "talvez não... Talvez Você tenha Se condoído. Quem sabe tenha feito um café, pegado o jornal, sentado, lido as manchetes. Até abriu a porta, mas o dia estava frio e Você esqueceu o casaco, voltou-Se e desistiu de sair. Talvez tenha tido preguiça de se levantar, de voltar à Sua tão distante habitação. Quem sabe eu abra e porta e..."

Na esperança aflita, levanto-me, olho para os lados e corro casa afora em busca de Sua presença. Faço barulho, chamo, rastreio cada cômodo e olho pela janela. Rapidamente constato: o jornal está lá fora, as xícaras, limpíssimas, a poltrona, vazia. Como costumeiro, a casa está intocada. Tarde demais. Nenhum bilhete, nenhuma pegada no chão, nenhum sinal, exceto eu mesma, de que Você esteve aqui. Mas sei que só estou porque Você me trouxe... Não é? Sento-me e inutilmente choro. Quero acreditar que sim, já que sempre acordo em casa, mas nunca durmo nela. Não que eu me recorde de onde é que adormeci, mas é improvável que minha mente anestesiada e meu andar descoordenado soubessem o caminho de volta, tendo ido tão longe.

Meu vestido, uma tentativa de fingir com efetividade, já não parece tão convincente. A maquiagem está borrada, os olhos, fundos, o cabelo, embaraçado. Minha imagem lembra a já famigerada de uma meretriz cansada, tenho de admitir. Não sei mesmo o que fiz de mim ontem... Sei apenas de ter me entupido de entorpecentes que, agora, repudio. Nada como a luz da manhã para se arrepender da escuridão da noite: dor de cabeça, tontura, ressaca. Mas isso não é o que mais me incomoda.

Estou só. Você me deixou aqui e partiu. E o restante, silêncio insuportável que emana e transborda da mobília, prova a minha insuficiência e preenche meu vácuo, que chora. É palpável, é líquido represado pelas paredes, e, de repente, estou afogando. Preciso sair para respirar. Lavo o rosto, retoco a maquiagem, escovo os cabelos e saio.

O dia é bonito e há muito a se ver. Muito a se ver é descanso para a alma. Ando, portanto, confortada, por entre as ruas e praças, lojas e cafés, desprovida de destino – aproximo-me do que me parece mais bonito, analiso, sorrio e depois avisto outro alvo igualmente belo e igualmente deleito-me em sua efemeridade. Se não isso, vou aos passantes. Ah, os passantes. Os passantes são envoltos num éter de mistério infindável e, por isso, faço questão de abordar alguns. Também sou abordada. Uns vêem a súplica em meus olhos (“conte-me algo novo, por favor!”) e atendem a ela. Outros a ignoram. Outros escandalizam-se com minha necessidade e tentam convencer-me de que há desígnios mais valiosos, embora eu, farta de suas nobres e delimitadas descrições, os rejeite. Meu desígnio é este: quero que me contem fatos aleatórios e explanem opiniões desconexas entre si. E quero contar, também, o que demanda hipérboles, mentiras e impessoalidades. Só.

Em certo momento, vejo que andei tão conscientemente, num controle tão bem encenado, que chego a imaginar que, na verdade, eu soube o caminho de volta desde o início...

Mas a noite chega e, com ela, o breu e a solidão. O silêncio agora me persegue no escuro. Vem o pânico: não há como fugir uma vez que a fuga se completa - já olhei o maior número de paisagens, já corri a maior distância, respirei o ar mais exterior, que agora teima em faltar, e, ainda assim, assisto às ruelas tornarem-se sem saída e gradativamente delgadas. Meu desespero despiciendo, mas insistente, conduz-me às luzes do bar, da danceteria, ou de qualquer outro campo de refugiados a fim de que eu cumpra o roteiro: como escape último, ofereço-me a Baco e danço, cada vez mais cambaleante, de acordo com a batida, numa celebração grotesca ao alívio aconchegante da distração. Por fim, embriago-me até perder os sentidos, a memória e, objetivamente, a consciência de que meu vazio se faz mais presente do que nunca.

Provavelmente deito-me na sarjeta e durmo. E, então, minha esperança: provavelmente Você vem, pontual e certeiro, misericordioso, como quem me seguiu com os olhos o dia todo, como quem me sonda e me conhece, recolhe-me de minha miséria e me leva para casa.

No fundo, eu sei: há mais uma motivação, essa autodestrutiva, para tudo isso. Caminho até tão longínquo e abandono-me com tanta frieza para que Você venha me buscar. Para me sentir procurada, alcançada e carregada por Você.

Acordo, porém, sozinha. É tarde demais.